Gatinhas Bem Cheirosas

Este é o blogue que vai certamente mudar a sua vida...para pior. Criamos ideias que não vão chegar a lado nenhum.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Que estranha forma de vida!


São 10 horas da manhã. No meio da praça, os velhos do bairro sentam-se nos bancos do jardim. Vêem passar gentes mais novas, apressadas para chegarem a algum sítio. Eles, os velhos, também já tiveram pressa, um dia. Agora, sentados, observam a passagem do tempo com o jornal de ontem numa mão e a bengala noutra. Guardam sempre consigo um saquinho de pão esfarelado que as suas Marias preparam para dar aos pombos. Hoje o tópico da conversa é sobre futebol. Amanhã será sobre doenças.

Se não houver motivo para grandes conversas, comentam sobre o tempo. Olham bem lá para cima, vêem que hoje não vai chover.


- Parece que não, mas doem-me os ossos. Isto quer dizer qualquer coisa...

- Ora homem! Isso quer dizer reumático! - e batem com as bengalas no chão, lembrando-se da atroz aflição que é aguentarem-se com o reumatismo. Enfim, males da idade...

Mas tornam-se jovens de novo, como crianças quando vêem uma rapariga de vinte anos a passar diante deles:

- Abençada mãe que te criou! - comenta um.

- Ai, se eu fosse mais novo... - comenta outro.


E, se a rapariga leva uma saia muito curta, abrem ainda mais os olhos amarelados, esticando a pele rugosa, mas com grande pudor amargo, dizem:

- No meu tempo, não era assim! Ai, no meu tempo, no meu tempo...


São agora 13 h. Hora do almoço. As suas Marias já devem de ter tudo preparado.

Depois do almoço, voltarão ao mesmo banco do jardim, ou então apanharão o autocarro na Praça do Chile, já que o passe é mais barato, e voltam a fazer o percurso contrário. Ou então, irão ao centro comercial da zona à procura de um assento para verem a azáfama do consumismo.


Isto é que é vida! Mais o reumático, as conversas do futebol, o governo que só faz asneiras; no nosso tempo é que era bom; ai a rapariga da saia curta, o desejo de se ser outra vez novo, o tempo, o reumático, as conversas de futebol... Já são horas de jantar e os velhos teimosamente conversam. Querem ficar mais tempo, ali, sentados, depois do passeio até ao Chile e da ida ao centro comercial. Querem que o tempo passe devagar, devagarinho e vêem o tempo das outras gentes a passar tão depressa!

Finalmente os velhos ignorados, tristemente sós, recolhem-se nas suas casas, passo a passo, devagarinho... ouvem-se os seus passos pesados e rastejantes, titmados pelo som das suas bengalas.

Dexaram restos de côdeas no passeio que ainda servem de alimento para os pombos. A praça ficou vazia, mas amanhã voltarão, à hora do costume. Que estranha forma de vida!

A terceira idade e os autocarros

Ainda utilizando termos de documentário da National Geographic, apresento mais uma crónica sobre este animal que todos nós seremos um dia: O Idoso.
É algo inevitável, fomos crianças, jovens... somos adultos (esse peso de responsabilidade ainda me custa aceitar) e iremos ser velhotes. Só temos que aprender com eles, com as suas experiências e histórias passadas. O que me custa um pouco de ver é a vida que muitos desses velhotes levam hoje em dia. O facto de terem chegado à terceira etapa das suas vidas, fez com que muitos deles arrumassem as botas de vez, levando simplesmente uma vida que se resume a uma visita ao jardim do bairro ou a um passeio de autocarro até ao último destino. Esses são os seus territórios favoritos. O autocarro é simplesmente o mais famoso. Desculpem-me não me levem a mal agora... mas fora do autocarro eu até nutro uma simpatia para os velhotes, que , como já anteriormente referi, são o símbolo da experiência de vida. Mas como consumidora assídua dos autocarros, vejo que um velhote simpático, dentro de um veículo colectivo torna-se no mais verdadeiro "animal" a defender com unhas e dentadura o seu território.

Para quem trabalhe e tenha uma vida ocupada, e necessite do autocarro como meio de transporte necessário, encontra certamente um número de passageiros considerável de bengala na mão, e cabelo grisalho, emitindo sons de "resmunguice" a toda a hora. Eis o Idoso.
Este ser humano tem como o autocarro o seu território pessoal. Ninguém mais tem o direito de lhe ocupar o lugar.


Situação: manhã, hora de ponta. Numa fila desorganizada os velhotes amontoam-se na paragem do autocarro. Quem consegue lugar na paragem, está satisfeito. De quem não consegue ouve-se o primeiro "ai" ou queixa de dores nos joelhos.
O autocarro chega e os velhotes, tal como um enxame de abelhinhas encorvadas, colocam-se todos em frente do possível local onde a porta se irá abrir. Pode o motorista de repente avançar alguns centímetros e o pequeno enxame persegue ancioso a porta de entrada para a viagem das suas vidas: Hospital da Sta Maria, Praça do Chile ou Colombo, onde passam horas e horas a matar tempo...
A porta abre-se lentamente e lá vemos os velhotes empurrando-se uns aos outros sem reparar se ultrapassaram o direito de alguém - são mais velhos, têm por isso todo o direito de passar à frente de quem quer que seja, pois claro! E lá vemos a parte que mais me pertuba. Lentamente e custosamente a velhota à minha frente sobe o degrau. Até aqui tudo bem. Temos que ser pacientes. As pernas da senhora já não são o que eram. Em tempos idos, andava como ninguém, agora manqueia de bengala na mão. Há-de chegar o dia em que serei também assim. (Estou a pensar seriamente em começar a fazer desporto...)
Agora a parte pior: muito lentamente e reparando na possibilidade de se sentar em quase todos os lugares, a idosa cambaleante, parece dirigir-se a um lugar, confiante quase se senta, mas ainda à minha frente e eu na impossibilidade de passar, pois o corredor é estreito, hesita, anda mais um, dois, três passos, hesita mais uma vez. E eu sem poder dizer mais nada, nem sequer me queixar, pois seria acusada de falta de respeito. Finalmente encontra o lugar que lhe convém - bem perto da porta de saída. Ufa, consigo finalmente passar.
De todos os passageiros, os que têm bengala e cabelos grisalhos são os que mais se queixam da vida. O alvo de acusação é quase sempre os jovens: trazem mochilas, pois são um incómodo de passagem ou passam-lhes à frente (aí já dão conta). Queixam-se do senhor que aparentemente saudável se senta nos lugares reservados para deficientes - quando muitos velhotes sem bengala, não serem considerados como tal; queixam-se dos autocarros chegarem atrasados, quando não têm compromissos a cumprir, excepto consultas marcadas no hospital, e depois, claro, fazem a exclamação saudosista de tempo passado ter sido muito melhor.... "ai Salazar, Salazar!" - esta última exclamação provoca-me sempre algumas comixões...

Mais uma vez peço: não pensem mal de mim. Não sou representante de alguma organização anti-idoso. Só tenho receio de um dia, quando chegar a velha, tornar-me num ser arrogante e azedo como os velhos de hoje em dia o são. É triste quando se chega a uma certa idade e ver que não há muito para viver. Cresce-se, trabalha-se durante uma vida, casa-se, tem-se filhos que mais tarde têm as suas vidas e desaparecem.

Um dia tive que ir ao médico e vi lá uma velhota que representa a solidão de muitos idosos. Ela passa quase todos os dias naquela sala de espera abafada e entretém-se a falar como as pessoas que estão à espera de serem atendidas. Depois das horas passarem, gosta sempre de falar com o médico, a pedir a sua atenção para qualquer problema de saúde que lhe surge no momento. É quase como que uma rotina quase diária. Quando não vai, passa o tempo na janela a observar um outro velhote que de uma varanda pergunta as horas a toda a gente que passa. Isto tem o seu quê de irónico. Pois a senhora acha aquilo ridículo quando ambos passam o tempo, à sua maneira. Isto dá que pensar...